quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Domingo, 18.09.11 - Acumulador de objetos

Para ser um pouco diferente das demais publicações, dessa vez escolherei apenas um caso e contarei o que nos aconteceu nos mínimos detalhes, para que acompanhem os sentimentos, as apreensões, as visões que temos que enfrentar.

Eram aproximadamente 20 hs, e eu havia acabado de sair da Delegacia para tentar comer alguma coisa (já que nós temos que comer na hora de mais tranqüilidade e descansar quando pudermos, pois nunca sabemos quando seremos chamados novamente). Ingressei em minha casa e fui tomar banho, para tentar tirar um pouco do peso da primeira parte do plantão, e também a fim de conseguir um fôlego extra para agüentar as horas noturnas que estavam por chegar.

Durante o banho, escutei o telefone tocar. Nosso telefone funcional tem um toque característico e toda vez que ouço, já me preparo para o pior (normalmente - 90% das vezes - as ligações que recebemos dizem respeito exclusivamente ao trabalho, sobretudo quando estamos no dia do nosso plantão). Saio ainda molhado, enxugo as orelhas para não danificar o aparelho e recebo a notícia de que um óbito havia ocorrido em um bairro distante. Saio sem pestanejar do box e visto as roupas para esperar a viatura da nossa gloriosa Volante passar em frente de casa para me levar ao local.

Vamos no meio do caminho escutando a comunicação via rádio da PM, atentos a eventuais outras novidades. E por sorte, nada de muito importante foi comunicado, apenas uma briga e um disparo de arma de fogo, com vítima encaminhada ao hospital (essa vítima veio a falecer ainda durante a noite, enquanto atendíamos a ocorrência que narro abaixo, não conseguimos estar em dois lugares ao mesmo tempo, e optamos por atender a quem primeiro nos chamou).

Aportando no local, haviam duas viaturas da Brigada Militar, mas eles estavam preocupados com os acontecimentos e perguntaram se não poderia ficar apenas uma das viaturas por lá, para que atendessem a outros pedidos. Lógico que não me opus, pois ao menos uma ficaria para narrar os fatos e outra trataria de deixar a cidade um pouco mais segura. Apenas um brigadiano começa a explicar o ocorrido, quando o outro sai do meio de um matagal, segurando uma lanterna e com cara de alício por ter saído na rua (mais tarde fui entender o porque do suspiro). E é aqui que começa a nossa história.

Para começo de aventura, todos precisávamos de lanternas, já que a residência ficava atrás de um conjunto de árvores e plantas de médio porte. Ligamos as luminosas e começamos a caminhada. No caminho, tínhamos que desviar de galhos, pedaços de madeira, vidros quebrados, atravessamos uma quase imperceptível ponte (que escondia embaixo de si um pouco de água parada), e fomos contornando a residência. As paredes eram de tijolos à vista, dispostos de forma desordenada, com uma grade de proteção contornando parte da casa com garrafas pet fincadas onde eram as pontas em tempos áureos. A PM já havia entrado no local em primeiro lugar, pois eram eles que estavam com a irmã da vítima quando o corpo foi encontrado, e isso facilitou o nosso ainda difícil trabalho, porque o caminho estava ao menos traçado.

No primeiro cômodo, assim como nos demais, havia uma infinidade de coisas amontoadas. Desde garrafas, relógios quebrados, latas, madeira, telhas quebradas (que haviam caído em algum tempo que ninguém soube precisar), geladeiras, etc, etc. Era muito árduo o nosso acesso, mas devagar fomos ingressando. Peça por peça, uma curva para a direita, outra para a esquerda, cuidado com a cabeça para não bater na carroça estacionada desde milênios ali, outra guinada para a esquerda e mais uma à direita. Ufa, enfim chegamos na porta principal; tudo o que caminhamos, o nosso pequeno labirinto, eram apenas aposentos auxiliares. Ela estava arrombada (a própria PM havia forçado-a, com o consentimento do familiar, para melhor apurar os fatos), e dentro, mais paradas acumuladas. Não havia espaço para que pudessem caminhar duas pessoas lado a lado, por isso tivemos que fazer uma fila indiana.

Encontrado o corpo, ele estava revirado, com a cabeça para fora da cama, como se a pessoa tivesse tentado levantar ou algo assim, no momento em que morreu. A quantidade de roupas existentes no quarto era incontável, e todas estavam praticamente sobre a pequena cama. Lá foi o único local em que encontramos luz, envolta em uma garrafa pet verde, e um ventilador ligado. A rede elétrica foi obtida através de um gato na fiação, e o gasto devia ser tão ínfimo que ninguém havia percebido até então. Para completar o nosso ambiente insalubre, existiam duas garrafas de 2l cortadas ao meio, cheias de urina. A pessoa era tão enclausurada, vivia tanto para si mesma, que nem ir ao banheiro para despejar os dejetos era capaz. Olhei para a cena e tentei ver se havia algum sinal de violência, mas nada foi encontrado.

Continuei as buscas em toda a casa, para ver se existia algum acesso mais fácil para a retirada do corpo, e também para ver se encontrava algum vestígio que pudesse ser importante para a cena em que nos encontrávamos. Infelizmente, ou felizmente, era impossível encontrar qualquer bem no meio daquela bagunça. Pensem em um lugar desarrumado, com coisas dos mais diversos tipos empilhados de forma desordenada, como se tivessem sido jogadas apenas, multipliquem por 10 e terão noção de como era a residência internamente. Localizei a geladeira, mas não tive coragem de abrí-la, e ignorei sua presença ali. Na verdade queria é sair daquele lugar totalmente escuro e cheio de objetos indefinidos.

Sanadas as dúvidas, entendi que não havia sido cometido nenhum crime, e que deveríamos apenas recolher o corpo para o DML fazer a perícia e, dependendo do resultado, regressar com luz solar para melhores buscas, pois só com as nossas lanternas era impossível achar algo.

Chegado o camburão dos peritos, voltamos à nossa peregrinação para sair da casa e depois voltar mostrando o caminho. Dentro da peça, só os corajosos peritos (repito, esses profissionais merecem todo o nosso respeito, pois a tarefa que lhes incumbe não é nada fácil) conseguiram entrar para remover. Coloquei luvas para tentar ajudar em algo, mas o lugar era tão estreito que apenas ajudei moralmente e com a luz da minha lanterna. No momento da retirada, alguém derrubou o xixi no chão, e ficou aquela mistura de odores horrível, sobretudo com a movimentação do corpo, já em estado de putrefação.O saco que trouxeram não foi capaz de suportar o peso, e por isso foi usada uma coberta de auxílio. E lá vão os peritos, passinho por passinho até sair do sufoco, esquerda, direita, abaixa a cabeça, respira um pouco, e continua. Já fora da residência, ajudei a pegar a bandeja e a carregá-la para o veículo. Foi o fim da minha atuação.

Após isso, ainda conversei com familiares para saber do passado do nosso ermitão e conclui que ele havia morrido de causas naturais (posição confirmada pelos peritos posteriormente). Assim, todo esse trabalho foi para buscar um corpo que no fim das contas não teve nenhum fim criminal, não foi objeto de nenhum tipo de investigação. Fizemos isso simplesmente para trazer um conforto para a família que já havia sofrido bastante com a perda do ente querido.

Nem preciso dizer que outras muitas ocorrências aconteceram, mas se eu as contasse, teríamos muitas e muitas palavras a serem repetidas, por isso paro por aqui. Mais uma vez com a sensação de dever cumprido; estamos aqui para ajudar a todos, inclusive aqueles que já se foram. Que eles descansem em paz.

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